agosto 02, 2020

Memória, Viva e família


Alguma vez você já procurou saber a história da sua família? Quantas vezes já perguntou a algum parente sobre sua vida? O que está fazendo para manter a memória do seu núcleo viva?

Memória. Em sua definição, a faculdade de conservar e lembrar de estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos; um ato de revivescimento. Para muitos, uma forma de nunca deixar quem já partiu desaparecer completamente, pois é na lembrança que as pessoas prevalecem vivas, podendo permanecer assim por gerações, caso sejam lembranças repassadas.

Partindo desse princípio, surgiram os dias de orações para aqueles que se foram. No Brasil, Dia de Finados; no México, Dia de los Muertos; na Espanha, Día de Todos los Santos e assim por diante. Até mesmo o Halloween (palavra que vem de "All Hallow's Eve", "véspera de todos os santos"), nos Estados Unidos, está atrelado a essa tradição. Todos comemorados entre os dias 31 de outubro e 02 de novembro, porque acredita-se que há o enfraquecimento da proteção que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos nesse período.


Como a criatividade é algo que não se priva de inspirações, nada melhor do que misturar uma cultura já antiga com uma história atual para brincar com ou mudar nossa perspectiva sobre o que está ao nosso redor, não é mesmo? Assim faz "Viva - A vida é uma festa", filme da Pixar dirigido por Lee Unkrich e lançado em 2017 que conta a história de Miguel, um menino com o sonho de ser músico, mas que, devido à aversão de sua família à música, causada por traumas passados, não consegue conciliar o amor por seus parentes com o que ele realmente é. Assim, Miguel embarca em uma aventura no Dia de los Muertos, na qual conhece mais de si mesmo e da sua própria história.

Não só o desenvolvimento da obra é muito bem feito, com início, meio e fim bem casados e uma construção felizarda de cenários e personagens, trabalhando a morte de forma delicada e natural – conectada com a vida -, mas também seus detalhes impressionam ao trazerem reflexões importantes a respeito do feminismo, quando coloca a mulher como figura forte e líder; da ampliação cultural, ao abordar uma tradição mexicana, longe do contexto americano; da importância dos animais e da natureza em nossas vidas, que têm muito a nos ensinar, sendo guias para nós; da ganância e até aonde ela pode nos levar; além de, principalmente, ser cheia de pontos específicos que trabalham bem o quesito "mudar"/"se encontrar", com vários simbolismos ao longo da narrativa que a tornam ainda mais bela e sobre os quais falarei um pouco.

Desvincular-se
Começamos o filme sabendo que Miguel é um apaixonado pela música, mas que devido a sua família e aos traumas dela, se reprime. Isso muito acontece em vários lugares do mundo, na realidade. Não necessariamente traumas, mas crenças e imposições também são fatores capazes de causar isso. Daí vem a necessidade de desvincular-se. Desvincular-se de tudo que conhece para aprender quais são seus reais princípios e não os adquiridos pelo meio em que viveu. É apenas quando Miguel decide que não quer mais fazer parte daquilo, que ele começa a jornada em busca dele mesmo, seguindo o que seu próprio âmago deseja e não a sua família.

Ponte de pétalas laranjas/douradas
Quando Miguel decide ir em busca de suas próprias vontades, ele acaba transitando para a realidade dos mortos, mas ainda está em seu mundo. Para atravessar para o mundo dos que já partiram, ele precisa passar por uma ponte de pétalas laranjas/douradas. Isso me lembrou muito “O mágico de Oz” e a estrada de tijolos amarelos. Em ambas as histórias, esses caminhos são o que levam seus personagens em direção ao autoconhecimento e, por isso, algo tão belo, simbolizando a busca pelo seu próprio eu.

Mais vivos do que mortos
Mais uma vez me lembrei de “Oz”, quando percebi que, em “Viva”, o mundo dos mortos, na verdade, tinha cores muito mais intensas, vibrantes que o mundo dos vivos, este marcado por cores mais terrosas. Isso, porque é quando corremos atrás do que realmente queremos para nossas vidas que nos sentimos mais vivos, é quando sentimos as emoções de forma mais aflorada, quando passamos a vivenciar as coisas por inteiro e, portanto, somos nós mesmos.

Em uma caverna de águas cristalinas
É no momento em que o personagem se encontra em uma espécie de caverna com águas cristalinas que ele descobre mais sobre si mesmo, sobre seu passado e sua própria história. Ali, após ser lavado pela água da caverna, sendo isso uma simbologia de limpeza, de clareza, o menino aprende sobre a importância da família, sobre valorizar àqueles que fazem parte da sua história e sobre seus princípios.

Abrir-se para aprender mais
No final, Miguel ajuda seus parentes através daquilo que ele é apaixonado: a música. Nesse momento somos agraciados com muita emoção, pois é o ponto em que a compreensão e o respeito pela individualidade de cada um passa a existir. A música não era algo ruim, muito pelo contrário, e é a coragem do menino e sua força de vontade, não apenas para ser músico em si, mas por fazer isso com um propósito, que abrem a cabeça dos seus parentes, deixando de lado traumas repressores. Com isso, ao encararem as novas oportunidades, outras pessoas da própria família, que poderiam nem saber sobre essa paixão, descobrem gostar da arte também, o que pode ser visto nas últimas cenas quando todos estão em festa, dançando, cantando e tocando, demonstrando que é quando nos abrimos às possibilidades, que mais aprendemos sobre nós mesmos.

A família - e aqui não necessariamente me refiro à imagem tradicional da mesma - é um dos bens mais preciosos que temos em nossas vidas. De vez em quando, assim como faz Miguel em sua jornada, precisamos seguir nossos rumos em direções opostas às suas imposições ou crenças - pois a nossa liberdade também é algo que necessitamos cultivar - e, assim, acabamos decepcionando pessoas. Mas, ao haver o amor sincero, o querer bem acima de qualquer ideia pré-fabricada - citando genericamente “O menino do dedo verde” -, mesmo que leve um tempo, a família compreende e respeita às decisões de cada um, porque a felicidade do outro, ao seguir o que ele quer, está intrínseca à felicidade do todo. Daí, a importância de valorizar esse núcleo. Seja demonstrando amor no dia a dia, seja conservando sua memória. E essa mensagem, bom, o filme passa de maneira primorosa.

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